
A estrutura brasileira é feita para criar pessoas mesquinhas
14 horas atrás
Há um erro recorrente na análise de sociedades desestruturadas: atribuir seus males a falhas morais individuais ou a déficits econômicos isolados. Essa leitura é confortável, mas superficial. O problema central não é que indivíduos “se tornem maus”, nem que a pobreza produza automaticamente comportamentos degradados. O problema é mais estrutural e mais grave: certos ambientes sociais treinam seus membros para agir de modo predatório como estratégia racional de sobrevivência.
Em sociedades funcionalmente ordenadas, a cooperação tende a ser vantajosa. Cumprir regras, agir com civilidade, respeitar contratos informais e confiar minimamente no outro não é altruísmo; é pragmatismo. O custo de trair a confiança alheia costuma ser alto, e o benefício de manter reputação é real. Já em sociedades desestruturadas, essa lógica se inverte. A experiência cotidiana ensina que a confiança é punida, a honestidade não é recompensada e a cooperação frequentemente beneficia o oportunista, não o cooperador.
Esse deslocamento não é moral, é adaptativo.
Quando normas são instáveis, punições são seletivas e recompensas parecem arbitrárias, o indivíduo aprende rápido que agir corretamente não aumenta suas chances de prosperar ou sequer de se proteger. Nesse contexto, comportamentos que em sociedades estáveis seriam vistos como desvios passam a ser interpretados como inteligência prática: levar vantagem, enganar antes de ser enganado, usar agressividade como defesa preventiva, explorar brechas como forma de segurança.
O ponto decisivo é que esse aprendizado não acontece no nível do discurso, mas no da vivência repetida. Não é preciso acreditar em nada para absorver essa lógica; basta viver tempo suficiente em um ambiente onde regras não se cumprem, autoridades não são exemplares e a previsibilidade moral é baixa. A sociedade passa a funcionar como uma escola informal de desconfiança.
Isso explica por que países desestruturados produzem algo mais corrosivo do que pobreza ou desigualdade: produzem má influência sistêmica. Não se trata apenas de maus exemplos vindos do topo, embora eles existam. Trata-se da normalização cotidiana de microcomportamentos predatórios, que se espalham horizontalmente. O sujeito não age assim porque “quer”, mas porque percebe que todos ao redor agem assim, e que agir diferente implica risco real.
Nessas condições, a civilidade deixa de ser virtude e passa a ser vulnerabilidade. A polidez parece hipocrisia, a gentileza parece ingenuidade, o cumprimento de regras parece submissão voluntária a um jogo fraudado. O espaço público se degrada porque ninguém espera boa-fé do outro. O conflito não é exceção; é estado latente.
Esse ambiente gera um tipo específico de caráter social: não o criminoso clássico, mas o sobrevivente defensivo. Alguém sempre alerta, sempre desconfiado, sempre pronto a revidar, antecipar ou explorar. Não há prazer nisso, apenas cálculo. É uma ética mínima de autopreservação em um cenário percebido como hostil e moralmente caótico.
O erro analítico comum é interpretar esse fenômeno como “falta de educação”, “ausência de valores” ou “problema cultural abstrato”. Na verdade, trata-se de um colapso da previsibilidade moral. Quando o indivíduo não consegue antecipar se regras serão aplicadas, se contratos serão respeitados ou se autoridades agirão com coerência, ele não consegue planejar a longo prazo. A ação se encurta. O horizonte moral encolhe. O imediatismo vence porque o futuro não parece confiável.
É aqui que a desestruturação institucional se conecta diretamente ao comportamento social, sem necessidade de psicologismo. Instituições não apenas regulam; elas sinalizam. Quando sinalizam incoerência, arbitrariedade ou impunidade, ensinam, de forma silenciosa, que o jogo é de soma zero. E em jogos de soma zero percebidos, a cooperação é irracional.
Esse processo tem um efeito cumulativo perverso. Quanto mais pessoas adotam estratégias predatórias defensivas, mais o ambiente se torna hostil, confirmando a percepção original. Forma-se um ciclo autoalimentado: a desordem gera comportamentos de sobrevivência, que aprofundam a desordem. Não é preciso conspiração, apenas adaptação.
Por isso, países desestruturados não exportam apenas produtos ruins ou indicadores sociais negativos; exportam padrões comportamentais. A má influência não está apenas no crime organizado ou na corrupção visível, mas na pedagogia informal do cotidiano. Aprende-se, desde cedo, que regras são flexíveis, que o outro é potencial ameaça e que o sucesso depende menos de competência do que de astúcia situacional.
Nenhuma campanha moralista corrige isso. Nenhum discurso sobre “valores” reverte um ambiente que pune a virtude na prática. Enquanto a estrutura social continuar ensinando que sobreviver exige predar, o apelo à ética será percebido como ingenuidade ou cinismo.
A conclusão é dura, mas necessária: sociedades não se degradam porque as pessoas deixam de ser boas; as pessoas deixam de agir bem quando o ambiente social torna a virtude um risco. Reconstruir civilidade não começa por slogans nem por repressão, mas por restaurar previsibilidade moral mínima, onde cooperar volte a ser racional e confiar deixe de ser um ato de coragem.
Enquanto isso não ocorre, o instinto dominante não será o da convivência, mas o da sobrevivência. E sobrevivência, em ambientes desestruturados, quase sempre assume forma predatória.
Crédito Revista Timeline - Allan dos Santos








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